Dialogismo

1. Termo que tem vindo a ser insistentemente empregue na sequência da tradução e divulgação no ocidente das obras do teórico e pensador M..M. Bakhtin e que corresponde à necessidade de encontrar um pressuposto ou denominador comum que informe centralmente todo o seu edifício conceptual, repartido por áreas do saber tão diversificadas como a filosofia, a estética e os estudos literários, a linguística e a filosofia da linguagem, e abordando doutrinas como o Marxismo e o Freudismo. De um ponto de vista filosófico-epistemológico, pode dizer-se que a posição deste autor, sendo à partida de orientação neo-kantiana (apostada em colmatar o fosso entre “matéria” e “espírito”), consiste numa teoria do conhecimento de orientação pragmática, já que (à semelhança de várias outras epistemologias modernas) nela se concebe a existência e o comportamento humanos em função do modo como os homens usam a linguagem. E o que caracteriza este uso é a orientação da palavra viva para o meio movediço dos discursos alheios com os quais interage (Bakhtin, The Dialogic Imagination, University of Texas Press, 1981, 276). Nesta prespectiva, quer o falante na sua individualidade quer o respectivo discurso são concebidos não isoladamente mas em contexto e em relação e ambos são encarados como ocupando um lugar único e irrepetível, historicamente determinado pelas coordenadas espácio-temporais (cronótopo) que, em cada momento, o definem. “O dialogismo defende que todo o sentido é relativo na medida em que ocorre apenas como resultado da relação entre dois corpos ocupando um espaço simultâneo mas diferente, sendo que corpos aqui podem ser entendidos como recobrindo um leque que vai da imediatez dos nossos corpos físicos até aos corpos políticos e aos corpos de ideias em geral (ideologias)” (Holquist, Dialogism, Routledge, 1990,20).

2. Ao contrário dos Formalistas Russos que apostaram na distinção da linguagem literária a partir do contraste estabelecido com a linguagem prática, referencial, Bakhtin enfatiza o que há de comum entre a situação de enunciação de qualquer falante e a situação de enunciação dum produtor literário: ambos estão condicionados ao diálogo, um diálogo que se verifica a diferentes níveis: entre o falante e o interlocutor directamente envolvido, entre o falante e o sistema linguístico no qual assenta e do qual deriva o seu discurso particular, entre aquele e o contexto imediato e mediato (povoado por uma multiplicidade de linguagens ou discursos diferentemente acentuados e ideologicamente saturados). Transpondo para o caso da literatura estes diferentes níveis corresponderão às seguintes relações dialógicas: entre o autor e o leitor ou, no plano intratextual e tratando-se de uma narrativa, entre o narrador, o narratário e as personagens (e respectivos pontos de vista), entre a série literária e a série linguística, entre a obra concreta e o sistema literário precedente e contemporâneo, entre a obra e o contexto social saturado de discursos e linguagens concretas de várias espécies - o que Bakhtin designa de plurilinguismo.

3. De todas as formas literárias aquela que mais favorece o dialogismo é o romance, exactamente porque este mantém com a linguagem uma relação peculiar, qualitativamente diferente da que com ela mantêm os géneros canónicos - épico, lírico e dramático. Enquanto para estes a linguagem é algo que tem de conformar-se às regras que os definem, regras que se antepõem à própria linguagem, espartilhando-a, o romance abre-se à linguagem nos seus diversos níveis de existência e de concretização, procurando acomodá-la. É a diversidade característica do plurilinguismo que determina a configuração romanesca. Enquanto os outros géneros manifestam uma orientação centrípeta relativamente ao universo linguístico encarado como uno e único, o romance exibe caracteristicamente uma orientação centrífuga, sendo permeável à diversidade linguística que questiona e relativiza o monolinguismo. Antes mesmo da ocorrência histórica do romance moderno com Cervantes, por exemplo, esta orientação centrífuga (frequentemente associada ao riso) acompanhou a história da humanidade e manifestou-se literariamente em formas que Bakhtin encara como constituíndo a pré-história do romance: a sátira manipeia (na Grécia antiga) ou a paródia macarrónica (na Idade Média) são algumas delas. Dada a plasticidade que as determinações do plurilinguismo lhe impõem, o romance é à partida amorfo e omnívoro (e neste sentido pode ser encarado quer como um anti-género, quer como um super-género), sempre disponível à assimilação da pluralidade discursiva e ideológica que povoa um dado momento histórico - abre, assim, uma “zona de contacto máximo” (Bakhtin, op, cit., 11) com a realidade contemporânea e manifesta uma “consciência galilaica” do mundo e da linguagem (por contraste com a carácter de “passado absoluto” (Bakhtin, op, cit., 15) e com a natureza monológica da epopeia, orientada por uma linguagem única e por um único ponto de vista). Daí que o problema específico da estética do romance seja, no entender de Bakhtin, o da introdução e da organização do plurilinguismo no seio da narrativa, as quais se revestem de um certo grau de complexidade já que não se restringem a fenómenos como o discurso directo sem intermediação (expressão imediata da autoriade última do falante) nem ao discurso objectivado (correspondente a uma personagem representada), mas reportam-se caracteristicamente a modalidades discursivas internamente dialogizadas (‘double-voiced discurse’ (Bakhtin, Problems of Dostoievsky’s Poetics, University of Minneapolis Press, 1984, 106). Por elas se refractam as intenções e o ponto de vista do autor/narrador que para tal recorre ao discurso de outrém. Estão neste caso formas composicionais como a estilização, a paródia, os géneros incorporados, as zonas de personagens, as construções híbridas, etc. Estas últimas marcaram, por exemplo, o romance humorístico inglês (de Fielding, Smolett, Sterne, Dickens e Thackeray) e consistem na inclusão do discurso e perspectiva do senso-comum no tecido da prosa narratorial, que assim passa a reverberar ironicamente a posição crítica do narrador autoral face àquele. Estamos perante um diálogo implícito ou virtual, um diálogo de duas vozes, duas visões do mundo, cujas fronteiras permanecem esbatidas ao nível do discurso (aparentemente da exclusiva responsabilidade do narrador). O que por este processo dialógico se manifesta não implica necessariamente a relativização das intenções semânticas últimas do autor implícito, as quais podem ser absolutas, não dispensando, porém, ser orquestradas pelo dialogismo, dado que, para a consciência prosaica não é suficiente uma sonoridade linguística única. Pode acontecer, no entanto, que o dialogismo se instale de forma mais radical, não permitindo que se privilegie uma voz, um ponto de vista, em detrimento dos outros, uma vez que todos os discursos, todos os pontos de vista surgem como que em pé de igualdade, num mesmo plano. Fala-se, então, de polifonia, conceito explorado por Bakhtin num livro de 1929, Problemas da Obra de Dostoievski, (posteriormente revisto e traduzido), e que nos confronta com vozes múltiplas (incluíndo a do narrador), colocadas no mesmo nível, inviabilizando qualquer subordinação recíproca. Encarada por Bakhtin como inovação decisiva de Dostoievski, a polifonia prefiguraria a tendência maior da prosa moderna no sentido da abertura ou inconclusividade.

CRONÓTOPO; FORMALISMO RUSSO; POLIFONIA

Bibliografia : M. M. Bakhtin, The Dialogic Imagination (1981); M. M. Bakhtin, Problems of Dostoievsky’s Poetics (1984); Michael Holquist, Dialogism (1990); Julia Kristeva, “Une poétique ruinée”, pref. a M. Bakhtine, La Poétique de Dostoievski (1970); Tzvetan Todorov, Mikhail Bakhtine : le principe dialogique suivi de Écrits du cercle de Bakhtine (1981); V.N. Voloshinov (M. Bakhtin), “Social Interaction and the Bridge of Words”, Marxism and the Philosophy of Language (1986).

Isabel Fernandes

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