Hermenêutica (2)

O termo hermenêutica tem sua própria história. Usado pela primeira vez em Aristóteles, como título de seu tratado de lógica do juízo e da proposição, Peri Hermeneia, foi também utilizado pelos sofistas numa referência a necessária interpretação de Homero e dos mitos gregos. A emergente teologia cristã do século III, na Alexandria, enfrentou a questão hermenêutica em relação à exegese bíblica. Santo Agostinho em seu tratado “Da Doutrina Cristã” nos oferece um primeiro ensaio de uma teoria da interpretação escrituraria e teológica.

Nos tempos modernos foi Schleiermacher (1768–1834) quem marcou a hermenêutica em seu sentido de exegese de escrituras sagradas, partindo de princípios rigorosamente metodológicos, este autor contribuiu ao dar os primeiros passos ao aproximar a hermenêutica da filosofia. O projeto de Schleiermacher de uma hermenêutica universal se baseia na noção de compreensão.

Foi sob influência decisiva deste teólogo que a hermenêutica se apresentou como uma prática metodológica de interpretação no interior desses domínios. Este autor, ainda que sua filosofia não tenha exercido a mesma influência que outros filósofos de sua época, como Kant, Hegel e outros, foi com certeza um dos mais interessantes de seu período. Não sendo somente teólogo, mas também filósofo, a maior parte de seu trabalho se concentra no que se chamaria hoje, filosofia da religião, mas é sobretudo sua hermenêutica (teoria da interpretação) e sua teoria da tradução que merecem mais atenção.

Embora ligado intensamente à tarefa religiosa, Schleiermacher tinha por pretensão expandir seus métodos e técnicas interpretativas a toda expressão humana. Ora, já podemos dimensionar os problemas que o nosso autor encontrou diante de ousada empreitada. A começar pelos diferentes tipos de discurso, e suas especificidades; assim como a variedade de áreas de conhecimento à que a hermenêutica se propunha a ser inserida. Tamanha ousadia tinha seus fundamentos, visto que através da aplicação metodológica da hermenêutica na exegese bíblica, foi possível constatar as possibilidades de expansão daquele método, visto que as Escrituras Sagradas contêm em si certas similitudes e princípios de textos históricos e jurídicos, o que implicou numa ampliação de seus métodos à outras áreas da expressão humana.

É preciso entender que para este autor todos os problemas de interpretação são, na verdade, problemas de compreensão, e por isso desenvolveu uma verdadeira doutrina da arte de compreender, não se atendo somente a uma agregação de observações inoperáveis. Sua contribuição significa algo realmente novo, visto que a dificuldade da compreensão e do mal-entendido (termo usado por Schleiermacher), já não são mais levados em conta só como momentos ocasionais de uma leitura, mas como problemas que devem ser eliminados de antemão.

Schleiermacher chegou a afirmar que a “hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido”. (Verdade e Método I, pág 255). Segundo ele, a resolução da hermenêutica está na idéia de um “cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação que se afastam completamente de toda ligação dogmática de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete”.

É correto afirmar que Schleiermacher não foi o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica em tornar compreensível a intenção de discursos e textos, mas sua contribuição original foi, sem dúvida, precisamente isolar o procedimento do compreender. Sua tarefa maior foi a de torná-lo autônomo, com uma metodologia própria, o que determinou um afastamento da essência da hermenêutica em seus predecessores.

Schleiermacher expandiu a tarefa hermenêutica ao colocar ao lado da interpretação gramatical a interpretação psicológica. A partir de agora, o que deve ser compreendido não é somente a literalidade das palavras e seu sentido objetivo, mas também a individualidade de quem fala ou do autor. Para Schleiermacher um pensamento só pode ser entendido se retrocedido até sua gênese. O que para alguns é um caso extremo de busca do sentido de um discurso, para ele é caso normal, além de constituir a pressuposição de sua teoria da compreensão.

A hermenêutica abrange ambas as artes interpretativas: a gramatical e a psicológica. Mas o que há de mais original na filosofia hermenêutica de Schleiermacher é sem dúvida sua reflexão acerca da interpretação psicológica. Para ele é um movimento para dentro da constituição completa do autor, um conceber o decurso interno de feitura da obra.

Dilthey (1833-1911) fez reviver o movimento iniciado por Schleiermacher direcionando-o como método de compreensão necessário às ciências humanas (ou, na linguagem de Dilthey, ciências do espírito). Foi Dilthey que tomou conscientemente a hermenêutica romântica ampliando e transformando-a numa historiografia, o texto a ser interpretado é a própria realidade humana no seu desenvolvimento histórico, um “conceber a partir da vida” (Verdade e Método I, pág 341), que serviu mais tarde como ponto de partida para a hermenêutica da facticidade de Heidegger.

Se as ciências históricas são compreensivas, ou interpretativas, como conceber através de seus enunciados, uma validade? Questão legitimada ainda na época de Dilthey na consagrada máxima de Nietzsche “não existem fatos, somente interpretações”, a questão da compreensão e da interpretação é empurrada ao centro de suas investigações: a compreensão exige uma misteriosa participação do interpretante à vida psíquica do outro (interpretado). Suas pesquisas mais avançadas procuram separar as ciências humanas dessa submissão à psicologia e dar ao movimento interpretativo uma compreensão mais objetiva.

A questão da história junto à hermenêutica em Dilthey está em sua interessante reflexão acerca dos conceitos de compreensão e explicação. O eixo central da filosofia diltheyana é a questão da história, da capacidade cognitiva da história, e para Dilthey é necessária uma aplicação ao estudo da ação histórica, da intenção do agente, sobretudo em conexão com a compreensão da realidade humana em seu desenvolvimento histórico. Daí o uso da hermenêutica a fim de interpretar as ações humanas. O discurso a ser interpretado é o próprio decurso de ações humanas em seu interior, a intenção que guiou o agente. Dilthey caracteriza suas intenções ao afirmar: “A riqueza da nossa experiência permite-nos imaginar, por uma espécie de transposição, uma experiência análoga exterior a nós e compreendê-la...”. Ou seja, é somente através de uma transposição analógica de minhas experiências, que posso compreender as ações alheias.

Dilthey se apropria da teoria hermenêutica enquanto caminho para constituição de uma “Crítica da Razão Histórica”, tão cobiçada pelas “ciências do espírito”, após a formalização filosófica da Crítica de Kant, como fundamento da ciência newtoniana. Dilthey recorre à filosofia romântica e ao significado da “Erlebnis”, da experiência vivida. A palavra proferida ou escrita, que relata o evento, implica em uma distância em relação ao evento: uma perda entre o originário da expressão na impressão.

“Se a exegese de um texto tem por finalidade exprimir o sentido contido no texto, como se espreme um suco de um fruto, a revivescência do sentido deveria coincidir com a repetição de Erlebnis a partir da qual se formulou o documento” (Gusdorf, 1988, pág. 234).

Ainda em Dilthey o grande problema de aplicação do movimento hermenêutico junto às ciências históricas não é esclarecido. Sua filosofia parece sustentar uma conexão entre a escola histórica com a hermenêutica romântica. Mas o esquema do todo pelas partes ainda encontra rejeição, sobretudo entre os historiadores, onde seu objeto não é um texto individual, mas a história universal. E foi Gadamer quem colocou o problema com grande clareza:

“não somente a história não chegou ao fim - nós mesmos, enquanto compreendemos a história, nos encontramos nela como membros condicionados e finitos de uma cadeia que continua a avançar. E partindo-se dessa situação precária do problema da história universal, parecem surgir facilmente dúvidas quanto a se saber se a hermenêutica está realmente em condições de servir de base para a historiografia” (Verdade e Método I, pág 273)

Se toda compreensão é a busca de sentido do que se fala ou escreve, e se a hermenêutica para Dilthey, é como para Schleiermacher, a “arte da compreensão”, como achá-lo numa obra não acabada, mas sim aberta e disposta a mudanças repentinas. Como fica o papel do interpretante que jamais poderá ser-lhe dado o todo?
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