A CANÇÃO DO EXÍLIO

Misturando saudade e nacionalismo num estilo clássico e sisudo, Gonçalves Dias foi criador de um dos mais célebres poemas em Língua Portuguesa

por Marcelo Xavier (marcelo@rabisco.com.br)

omposto em 1843, na cidade de Coimbra, Portugal, o poema “Canção do Exílio” é hoje sinônimo de seu criador, o poeta maranhense Antônio de Gonçalves Dias (1823-1864). Seus versos se confundem com o “inconsciente coletivo” de nossa cultura e alguns deles aparecem na segunda parte do Hino Nacional. A importância deste célebre texto é seminal: não existe antologia escolar que não o tenha escolhido ou que não o cite, fato que demonstra o seu papel de referência dentro da tradição literária brasileira. É fruto típico do Romantismo da primeira fase, quando nossa literatura ainda engatinhava. O crítico Agripino Grieco disse: “ninguém lê os poetas, mas raros são os brasileiros que não conhecem a ‘Canção do Exílio’”.

Se o tempo transformou a “Canção do Exílio” num poema emblemático, o tempo cuidou de banalizá-lo pela insistência em sua repetição. Da mesma maneira, autores que vieram após Gonçalves Dias se puseram a recriá-lo ou a conceber sua própria versão do texto. Em 1860, Casimiro de Abreu, representante da segunda fase, também criou a sua canção. No século passado, tivemos Drummond (“Nova Canção do Exílio”), Oswald de Andrade (“Canção de Regresso à Pátria”), Cassiano Ricardo (“Ainda Irei a Portugal”), Murilo Mendes (“Canção do Exílio”), Vinícius de Moraes (“Não Seja Já”) e Torquato Neto (“Marginalia II”), entre outros.

Saindo um pouco da distante admiração ao poema, a “Canção do Exílio” representou a Gonçalves Dias um momento de profunda dor e nostalgia. Em 1838, o maranhense havia partido para Portugal, decidido a se matricular na Universidade de Coimbra. Estava há quase cinco anos distante do Brasil e quase adaptado à flora e à fauna européia. Quase, porque a distância começou a lhe corroer a alma. Certo dia, ao se reportar à balada Mignon, de Goethe, encontrou ali algo como “conheces o país das laranjeiras? Para lá quisera eu ir!”. Retornaria em 1846, ano em que publicaria seu poema em sua obra de estréia, Primeiros Cantos, publicado a partir do ano seguinte.

Sobre a “Canção do Exílio”, eis que, misturando saudade e nacionalismo — duas das características do Romantismo, estilo literário então vigente — de sua pena brotaram os seguintes versos:

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá

Nosso céu tem mais estrelas
Nossas várzeas têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida mais amores

Estabelecendo um paralelismo entre os versos, os dois primeiros compõem o primeiro quarteto, que retorna no terceiro quarteto, representando o tema principal. A sugestão geral do poema é estabelecer diferenças entre a terra natal e o lugar do desterro, tanto físicas (“aves”, “nossos bosques têm mais vida”) quanto psicológicas (“nossa vida mais amores”). Os quartetos se encerram com a repetição dos dois primeiros versos, como uma ladainha.

Em cismar, sozinho à noite,
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.

A canção se encaminha para o fim com dois sextetos que desenvolvem e reexpõem o material apresentado na primeira parte do poema:

Minha terra tem primores
Que tais não encontro eu cá
Em cismar, sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá

E termina com a patética súplica:

Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá
Sem que desfrute dos primores
Que não encontro eu cá
Sem que inda aviste as palmeiras
Onde canta o sabiá

Note-se que o sentido de “exílio” é salientada pela repetição de versos-chaves, cuja sugestão é salientada tanto por versos-chaves quanto pelo formato do poema. Oriundo do primeiro Romantismo, Gonçalves Dias ainda mantinha certo sabor clássico em seus versos, que podem ser percebidos pelo modelo utilizado, comedido nos adjetivos, cuidadoso e emblemático nas imagens, aqui ele soube criar uma visão geral da idéia do desterro com um material poético breve porém marcante. Ou seja, ele é mais romântico na temática do que na forma. O seu texto reflete ainda o aproveitamento da disciplina clássica, diferente dos poetas do ultra-romantismo, que abusavam de imagens e da utilização de versos brancos e versificação diversa.

Há quem afirme que essa mesma contenção poética dos versos da “Canção do Exílio” tenha transformado o poema mais em um texto declamatório e de pretensa objetividade do que um instante de profunda meditação. Isso talvez explique a negligência que as pessoas costumam ter com relação à Gonçalves Dias, menos afeito ao ritmo dissoluto e apaixonado dos melhores momentos do Romantismo da segunda fase. Em última análise, à medida em que o texto foi elevado à estatura de um paradigma do Romantismo, a “canção” foi perdendo um pouco da sua aura original, fazendo com que o desavisado leitor não sinta o que o poeta buscou expressar, em sua totalidade.

Talvez quem soube recriar a tradição instaurada por Gonçalves Dias de forma magistral foi o compositor Chico Buarque de Holanda. Em 1967, ele compôs, em parceria com Tom Jobim a canção “Sabiá”, e que seria a campeã do III Festival da Canção, no ano seguinte. Aqui, a idéia de exílio, porém, tinha uma indisfarçável conotação política e Chico se refere a “uma sabiá” e a uma palmeira “que já não há”

Vou
Voltar
Sei que ainda vou
Voltar
Para o meu lugar
Onde eu hei de ouvir
Cantar
Uma sabiá

Vou
Voltar
Sei que ainda vou
Voltar
Vou deitar à sombra
De uma Palmeira
Que já
Não há

Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites
Que eu não queria
E anunciar
O dia.

Porém, Gonçalves Dias, o rapsodo das saudades de sua terra natal, o eterno autor da “Canção do Exílio”, por incrível que pareça, teve um triste fim: como um Moisés, morreu sem chegar à sua Terra Prometida. Vindo da Europa, o navio Ville de Boulogne naufragou ao cruzar a costa brasileira, num 3 de novembro de 1864. O velho poeta, coberto de glórias como o Timbira, desapareceu sem pisar na terra das palmeiras.

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